“Essa história de que ‘não é preciso se preocupar com a AIDS porque tem tratamento’, como vimos, é uma irresponsabilidade. Tem tratamento sim, mas não tem cura. O melhor tratamento continua sendo a prevenção. Depois de se descobrir contaminado, o caminho é procurar profissionais bem preparados e informados. Porque há muitos profissionais de saúde, inclusive médicos, que ainda não estão aptos a lidar com a AIDS, por desinformação.
Mariceli Bernini
Posso te dar o exemplo de uma paciente que se descobriu soropositivo quando a ginecologista pediu uma série de exames, entre eles o teste anti-HIV. Bem, ela recebeu a informação de que era soropositivo como quem recebe a informação de que o nível de colesterol está elevado. Ela saiu desesperada do consultório da ginecologista e, quando me procurou, já chegou dizendo “estou com AIDS”. Durante a entrevista, expliquei a diferença entre estar contaminada com o HIV e ter AIDS.
Quando uma pessoa faz um exame anti-HIV e o resultado é positivo, a pessoa pode se considerar ‘soropositivo’, ou seja, foi contaminada pelo HIV. Isso não significa que ela tenha AIDS. O HIV deprime o sistema de defesa do organismo, mas isso não é sinônimo de ‘ter AIDS’. Só se pode dizer que uma pessoa tem AIDS quando os exames detectarem que a carga viral está muito elevada e o CD4 estiver muito baixo. É nesse momento que a pessoa começa a apresentar um conjunto de sintomas, como diarréia, perda de peso, infecções oportunistas mais sérias, como pneumonias em seqüência, uma dor-de-garganta que não passa nunca, ‘caroços’ espalhados pelo corpo sem origem conhecida (mais freqüentes no pescoço)… Enfim, pessoa começa a ter uma série de doenças, todas ao mesmo tempo: isso é AIDS.
Definindo melhor, a AIDS é uma ‘síndrome’. O que é uma “síndrome”? É um conjunto de sintomas. Por exemplo, a “Síndrome do Pânico”. Por que a chamamos de ‘Síndrome’? Porque a pessoa sua frio, a boca fica seca, sente um terror que vem do nada… É esse conjunto que forma uma síndrome.
Por isso é preciso muito cuidado sobre como informar a pessoa que ela está soropositivo, porque ela pega o exame e acha que está morrendo. Não é assim. Na verdade, um resultado positivo para HIV, normalmente, não é nem tão sério quanto o paciente pensa, nem uma brincadeira que não deva ser levada a sério! Na década de 1980, o diagnóstico de HIV positivo era muito mais grave do que hoje, porque não existia medicação específica. Então, as pessoas se desesperam ao receber o resultado do exame, porque a imagem que vêm à mente é a lembrança de pessoas famosas definhando com a doença já em estado avançado, porque não existia tratamento adequado. Mas é importante, sempre, ressaltar que o tratamento para HIV não se assemelha ao tratamento para uma dor-de-cabeça, em que basta tomar um analgésico que a dor passa. Todo mundo reclama dos efeitos colaterais da medicação anti-retroviral”.
Contar ou não contar?
“A melhor hora de contar a alguém que você é soropositivo é a hora em que você se sente preparado, a não ser que o fato de não contar esteja expondo outras pessoas ao risco de contaminação pelo HIV. Por exemplo, se um paciente meu é soropositivo e é casado com uma mulher soronegativo, eu, como psicóloga, tenho obrigação profissional de alertá-lo quanto aos riscos de contaminação.
Voltando ao tema, por que a melhor hora para contar que se é soropositivo é a hora em você se sente preparado? Porque, se o contágio foi por via sexual, normalmente contar ao cônjuge envolve confessar uma traição, uma relação extra-conjugal. Como dizer ao marido ou esposa ‘olha, eu te traí e me contaminei com o HIV’? O casamento pode acabar nesse mesmo instante, eu não sei como anda o casamento dessa pessoa. Então essa questão é trabalhada na psicoterapia para que a gente desenvolva juntos uma maneira de contar ao cônjuge sem que a vida do paciente fique pior do que já está.
A infecção por HIV, queiramos ou não, está ligada à vida sexual. Quando uma pessoa conta para outra que está infectada com o HIV, está abrindo muito de sua intimidade. Normalmente, a outra pessoa quer saber quando, como e com quem contraiu a doença. Isso é uma invasão na privacidade do soropositivo. Por isso, é necessário que o soropositivo esteja se sentindo mais fortalecido psicologicamente, porque ninguém pode obrigá-lo a contar.
Esses aspectos são trabalhados na psicoterapia. Primeiro, é preciso trabalhar a auto-estima da pessoa. Porque aparece o sentimento de culpa, vêm pensamentos como ‘Mas que vacilo, eu não precisava ter me contaminado’. Ou seja, já é um momento de fragilidade; obrigá-la a expor sua condição de soropositivo não vai ajudá-la em nada. É preciso que o paciente esteja seguro, para que não conte aos outros sentindo medo.
Muitos pacientes chegam até mim sem saber praticamente nada sobre o vírus e a doença. Se eles mesmos não sabem o que têm, como vão contar aos outros?
Então, quando um paciente me pergunta se deve contar à família, eu peço que o paciente me diga o que ele sabe sobre o HIV/AIDS. Se ele mesmo não estiver seguro das informações que vai transmitir, vamos ter duas pessoas desesperadas em vez de uma!
No grupo de apoio aqui do IPrA, é constante o trabalho de fortalecimento da auto-estima das pessoas, e sempre surge a dúvida entre “contar ou não contar”. Cada caso envolve problemas diferentes. Por exemplo, um paciente já tem pais bastante idosos… Ele diz: “Se estou fisicamente bem, nem estou precisando tomar o coquetel, por que haveria de contar isso para meus pais”? Só que algumas dessas pessoas não contam para os pais, nem para os irmãos, amigos… Não contam para ninguém e ficam a ponto de explodir. Por isso, quando chegam aqui no IPrA, elas encontram a oportunidade de aliviar o stress de não ter com quem dividir seus sentimentos. Se não quiserem fazer terapia individual, podem participar das reuniões do grupo de apoio, em que os pacientes recebem todas as informações e o apoio necessário para seguir em frente com qualidade de vida, porque não estamos aqui para sofrer desnecessariamente”.
AIDS, Homofobia e Culpabilidade Sexual
“Até cerca de vinte anos atrás, a AIDS era conhecida como ‘peste gay’, porque, de cada dez pessoas infectadas, 9 eram homens homossexuais. Hoje, a proporção é dois homens para cada mulher infectada.
Alguns pacientes, nas reuniões de grupo, na primeira vez em que participam já vão dizendo, “olha pessoal, eu estou infectado, mas não sou gay”, sem que ninguém tenha perguntado nada sobre isso. Você percebe que a desinformação sobre esse tema ainda é muito grande. Soropositividade e AIDS não têm mais nada a ver com orientação sexual.
Mas o fato de que a principal via de transmissão do vírus da AIDS é o contato sexual, cria muitos problemas adicionais, que vêm da própria cultura de culpabilidade sexual. Por exemplo, se um bebê recém-nascido é contaminado com o HIV, todos caem em cima da mãe: ‘Como essa mulher, sabendo que era soropositivo, pôs um filho no mundo’? Se é um homem jovem, na faixa dos 18 aos 40 anos, então é rotulado como gay, todo mundo vai dizer que pegou o vírus com outro homem. Se é uma mulher jovem, logo é rotulada como promíscua, devassa…
E quanto aos idosos: você já reparou na reação das pessoas quando ouvem uma pessoa idosa falando sobre sexo? A própria TV ridiculariza nos programas humorísticos, com o rótulo de ‘velhinha safada’. Mas por que uma ‘velhinha’ não pode fazer sexo? Esse preconceito quanto à sexualidade dos idosos não faz sentido. Então, imagine a dificuldade que enfrenta uma senhora na faixa de sessenta, setenta anos, de chegar ao seu meio social e contar que é soropositivo para as amigas na mesma faixa de idade, para os filhos e netos.
Então, todo soropositivo já está ‘pré-classificado’ de forma muito preconceituosa: as mulheres são ‘as traídas’ ou ‘as devassas’, os homens são ‘os gays’, as crianças são ‘as vítimas’ e os idosos são ‘os safados’. Será que já não chegou a hora de mudarmos essa visão? As pessoas se contaminam porque fazem sexo ou usam drogas injetáveis, é uma realidade. E olhe, que estou falando do Rio de Janeiro… Imagine os problemas que um soropositivo passa em uma cidade pequena? Há muitas cidades no Brasil que não têm psicólogos, nem postos-de-saúde que distribuam preservativos, nem medicamentos anti-retrovirais. Eu ouvi de um paciente que, na parte rural da Zona Oeste do Rio de Janeiro, há uma grande quantidade de pessoas infectadas que não sabem o que é HIV, nem que estão contaminadas, embora já apresentem os sintomas da AIDS.
Mesmo sem considerarmos as DST’s, a AIDS entre elas, há todo um conjunto de culpas e tabus em torno do sexo. As meninas não contam para as mães que elas transam, os idosos não falam sobre sexo e, quando falam, são ridicularizados. As pessoas, quando vão falar sobre sexo, usam subterfúgios, eufemismos. Em reuniões de grupo, as pessoas falam em ‘meu pirulito’ em vez de dizer a palavra ‘pênis’. Qual o sentido desse sentimento de vergonha e culpa em relação ao próprio corpo? Foi o jeito que essas pessoas aprenderam sobre sexo. Então, aprenderam errado e têm que ‘desaprender’ o que sabem e aprender da maneira certa qual é função do pênis, da vagina, do sexo, da reprodução…
Os pacientes chegam então, ao atendimento, sentindo muito medo, sem saber o que podem falar e como podem falar. Por exemplo, eu já ouvi de uma paciente que, na primeira sessão, pensava: ‘será que se eu disser para essa psicóloga que eu saio com dois homens ao mesmo tempo ela vai me enxotar daqui’? Outro paciente era garoto-de-programa e demorou muito até que ele me contasse, por medo de que eu fosse expulsá-lo da sala de atendimento.
Imagine a situação de um jovem gay, que esconde dos pais a sua homossexualidade: como ele vai contar aos pais que é soropositivo? Já vai começar uma gritaria, o desespero, vão querer arrastá-lo para o hospital porque vão achar que está morrendo… Na psicoterapia, a gente precisa trabalhar não só os fatores mais imediatos relativos à infecção, como também, às vezes, problemas que acompanham a pessoa desde que ela nasceu.”
Complicações advindas da negação
“A negação acontece quando a realidade é tão dura que a pessoa não consegue suportá-la, e começa a viver uma ilusão. Por exemplo, se uma mulher sabe que o marido a está traindo, pode decidir fingir que não sabe e levar o casamento aos trancos e barrancos durante anos, porque admitir a realidade a obrigaria a tomar uma atitude.
No caso do HIV, a pessoa se contamina e, ao adotar a negação como saída, passando a acreditar em uma ilusão, ela troca de emprego, arruma outro namorado, muda de cidade… Essa é uma reação seriíssima, porque ela pode desenvolver doenças oportunistas crônicas e, também, transmitir o vírus para outras pessoas. Por isso é importante o trabalho multidisciplinar junto ao soropositivo. Não adianta o infectologista, por exemplo, florear o resultado do exame, dizendo que ‘está bom, mas vamos começar a medicação assim mesmo’… O certo é dizer a verdade, ‘Olha, seu exame não está bom. O que você anda fazendo? Está dormindo direito? Se alimentando bem? Tem bebido ultimamente? Anda estressado?’. Enfim, a realidade é dura, mas é melhor lidar com essa dureza do que negá-la.
Outra reação de negação é o caso das pessoas que ‘fogem’ do exame, por medo de ver um mau resultado. Por que não vão ao infectologista e não fazem o exame? Por uma falta de fortalecimento interior, essa pessoa não se sente capaz de lidar com a realidade do resultado do exame.
Há vários fatores interligados quando se fala em ‘negação’. A mídia também é um fator importante, porque transmite muitas informações que eram verdadeiras cinco anos atrás mas que, hoje, já estão defasadas.
Por exemplo, eu assisti outro dia um comercial na TV, patrocinado pelo Ministério da Saúde, em que uma mulher, supostamente uma advogada, dizia: ‘Eu tenho AIDS. Olhando para mim, ninguém diz que eu tenho AIDS’, e assim por diante. Aí, eu fiquei pensando: ‘será que ela tem AIDS mesmo ou está só infectada pelo vírus’?
Ou seja, as informações sobre o HIV/AIDS viraram um balaio de gatos, em que ninguém mais entende do que está se falando. Se as informações fossem dirigidas às causas do sofrimento das pessoas, esse sofrimento diminuiria e não existiria todo esse pânico em torno do diagnóstico.
E veja, nós estamos falando do Brasil, que é considerado modelo no combate à AIDS, um país que divulga informações não tão corretamente quanto deveria, mas ainda divulga alguma coisa, e distribui medicamentos e preservativos. É terrível imaginar a situação em países onde a negação é ‘institucionalizada’, onde não existe distribuição de medicamentos, em que a religião proíba as mulheres de mostrar o rosto… Como falar sobre AIDS/HIV se, inevitavelmente, para abordar o assunto, é preciso falar sobre sexualidade e sexo?
A negação também pode ser induzida pela religião e, nessa área, pode ter conseqüências terríveis. Por exemplo, eu tive um paciente que estava muito bem, com a carga viral ‘zerada’, isto é, ‘indetectável’. O que significa ‘carga viral indetectável’? Significa apenas que a quantidade de vírus no sangue é tão baixa que ele não é detectado pelo exame. Mas não é sinônimo de ‘exame HIV negativo’. Isso não existe, uma vez infectado, infectado para sempre. Mas esse paciente dizia que estava curado, que Jesus o havia curado. Quando ele foi desafiado pelos membros do grupo a fazer novo exame, ele não compareceu mais às reuniões.
Acreditar em milagres é uma questão muito pessoal mas, como profissional, eu não posso dizer que milagres aconteçam no caso do HIV/AIDS; não posso dizer que ‘Jesus cura’ a infecção por HIV. Muito provavelmente, esse paciente, com o passar do tempo, vai sofrer um aumento na carga viral porque parou com a medicação, o CD4 vai diminuir e ele vai adoecer.
O que posso afirmar com relação à religião é que as pessoas muito religiosas podem ter um nível de stress um pouco menor do que as outras. Se a pessoa tiver uma fé muito forte na cura, ela vai enfrentar a situação com menos stress e, conseqüentemente, vai ver uma redução na carga viral. Mas isso não significa que ‘Jesus a curou’, mas que o organismo vai secretar menor quantidade de hormônios de stress que, sabidamente, atacam as células de defesa. Nesse caso, a religião desempenha uma função muito semelhante à da terapia. Ela passa a freqüentar a Igreja e, com isso, faz um novo círculo de amizades, encontra apoio e conforto. Também se sabe que a fé contribui muito para melhorar a recuperação de várias doenças. Nesse sentido, a religião é muito positiva. O caso se torna grave quando um pastor diz ao doente que ele deve parar de usar a medicação. Até onde eu saiba, não conheço um único caso em que Jesus tenha curado alguém por procuração”.
Wednesday, December 10th, 2008, by Géssica Hellmann and is filed under "sexualidade, aids, comportamento, edições 91 a 95, sexualidade ". You can leave a response here, or send a Trackback from your own site.