O Papel da Psicoterapia no Tratamento de portadores de HIV/AIDS

Mariceli Bernini é psicóloga formada na Universidade Estadual de Londrina. Atualmente, faz um trabalho voluntário de terapia individual e em grupo direcionado ao público infectado com o vírus HIV no Instituto de Prevenção à AIDS – IPrA. Durante 90 minutos de uma conversa agradável e informativa, coletamos informações suficientes para uma série de três artigos. Nesta primeira parte, procuramos aprofundar o conhecimento sobre os estágios porque passam os portadores de HIV, desde o diagnóstico até o tratamento com a medicação anti-retroviral.

Mariceli Bernini

Informação e Desinformação “Por mais que a mídia bombardeie as pessoas com informações sobre o HIV/AIDS, eu noto que, quando essa informação não participa do cotidiano da pessoa, ela tende a ignorá-la. Aqui no IPrA, eu atendo a pessoas de todas as classes sociais e todos os graus de instrução. Há, inclusive, pessoas que poderiam pagar por atendimento individual, particular, mas que preferem ser atendidas na ONG, por ser direcionada exclusivamente para o público soropositivo. Percebo também que o nível de desinformação do paciente com diagnóstico recente – defino como “infecção recente” o paciente que se descobriu portador do HIV há no máximo seis meses – é igual em todas as classes sociais e graus de instrução. Pois a frase que eu mais ouço aqui é ‘eu não me cuidei porque achava que isso nunca iria acontecer comigo’. Com essa mentalidade, as pessoas não prestam atenção e não absorvem as informações trasnsmitidas”. Primeiras fases do processo terapêutico: negação e desespero. “A primeira reação do paciente com diagnóstico recente, normalmente, é a negação. Essas pessoas procuram a terapia por causa do diagnóstico, me contam sobre sua soropositividade, mas não querem falar sobre o assunto. Qualquer informação que eu forneça nessa etapa tende a assustar muito o paciente. Com o desenrolar do processo terapêutico, a negação cede lugar ao desespero. Por que o desespero se instala? Porque elas começam a prestar atenção nas informações sobre a doença e surgem as dúvidas, por exemplo, ‘como vou passar a transar agora’? Quando a pessoa tem um parceiro fixo, ela já tem muita dificuldade de contar que é soropositivo. Mas muitas pessoas não têm parceiro fixo, algumas chegam a ter mais de um parceiro por semana. Então, surge o dilema: contar ou não contar ao parceiro no primeiro encontro? O que tenho ouvido dos meus pacientes é que, por exemplo, quando vão a um baile, conhecem uma pessoa e, logo no primeiro encontro, já partem para um relacionamento mais íntimo, é que eles não contam ao parceiro que são soropositivos. Só após algum tempo, se o relacionamento perdurar, é que decidem tocar no assunto. Além do dilema ‘contar ou não contar’, há várias dúvidas que perturbam muito os pacientes, por exemplo, ‘como fazer sexo oral – com ou sem camisinha’? Uma queixa muito freqüente é a de que os homens não usam preservativos. Então, quando um homem soropositivo é heterossexual, isso significa que as mulheres com quem eles se relacionam também não usam o preservativo. Isso explica porque o número de mulheres infectadas está crescendo de forma alarmante. Se o uso do preservativo fosse generalizado, a epidemia não apresentaria o crescimento explosivo que tem atualmente”. Soropositividade e Stress “Numa terceira etapa, o desespero cede à medida que as informações vão sendo absorvidas e a pessoa consegue resolver suas dúvidas. A partir daí, é preciso cuidar de todos os fatores estressantes. O stress psicólogico, a fadiga, os estados depressivos, as crises existenciais, todos esses fatores são portas de entrada para as infecções oportunistas. Esse fato explica em parte uma dúvida freqüente: por que algumas pessoas apresentam rapidamente uma série de infecções oportunistas enquanto outras, infectadas há quinze, vinte anos, nunca ficaram doentes? Porque a maneira como as pessoas reagem aos problemas cotidianos está estreitamente relacionada com as infecções oportunistas”. Efeitos colaterais da medicação anti-retroviral “Quando o paciente passa da fase do desespero e, porventura sua carga viral aumenta muito e seu CD 4 diminui consideravelmente, podendo, inclusive, começar a apresentar doenças oportunistas, o médico infectologista o encaminha para o uso da medicação anti-retroviral. Aí, começa uma nova fase no processo psicoterapêutico, que é o de lidar com os efeitos colaterais da medicação. Esses efeitos colaterais ainda são devastadores em alguns casos. Um de meus pacientes desenvolveu um problema seriíssimo no fígado, chegou a ser internado e quase morreu. O infectologista que tratava dele teve que mudar a medicação anti-retroviral porque ela ocasionou uma hepatite medicamentosa. Há pessoas em que a medicação provoca alucinações, diarréia incessante, erupções na pele, insônia, dores de cabeça crônicas… Já outras pessoas não sentem nada, nenhum efeito colateral. Em qualquer caso, do ponto-de-vista psicólogico, surge o medo da morte: ‘se eu não tomar a medicação anti-retroviral, eu vou morrer. Mas, se eu tomar a medicação, vou ter que mudar o meu estilo de vida, não por causa do vírus, mas pelos efeitos colaterais’. Nessa fase, a psicoterapia desempenha um papel muito importante porque, uma vez que o stress é a porta de entrada das infecções oportunistas, quanto melhor a pessoa estiver em equilíbrio e de bem consigo mesma, menos riscos ela vai enfrentar. O stress e a imunidade estão tão estreitamente relacionados que, se um soropositivo tiver um forte aborrecimento na parte da manhã e, na parte da tarde, ele fizer o exame de CD4 e carga viral, muito provavelmente será detectada uma forte alteração no resultado do exame. Agora, imagine como não ficará o organismo de um soropositivo vivendo em situação de stress prolongado por semanas ou meses? Está comprovado cientificamente que o stress libera hormônios que atacam as células de defesa do organismo. Essa reação hormonal, quando somada ao ataque do próprio vírus HIV às células de defesa, pode deixar o soropositivo em situação terrível. A psicoterapia contribui conduzindo o paciente a uma situação de melhor equilíbrio interior, aprendendo a lidar melhor com a doença, com o diagnóstico de HIV positivo, ajudando a pessoa a criar estratégias para ter uma vida melhor”. A rotina de vida de um soropositivo: adaptações e restrições “Um diagnóstico positivo para HIV não significa que a pessoa tenha que sofrer incessantemente e que não possa mais fazer tudo o que fazia antes. É claro que pode, mas com um pouco mais de cuidado e algumas adaptações. Por exemplo, se a pessoa sente prazer no sexo, ela não precisa deixar de sentir esse prazer, mas terá que aceitar algumas restrições. Um de meus pacientes, antes de descobrir-se soropositivo, vivia em academias de ginástica. Depois do diagnóstico, por desinformação, ele parou com a atividade física, por achar que não podia mais fazer musculação. Pode sim. Ao contrário, o soropositivo deve fazer atividades físicas. O nó da questão, nesta etapa, é conciliar a rotina de vida anterior ao diagnóstico com as restrições e modificações decorrentes da doença e do tratamento. O paciente não precisa mudar todo o seu estilo de vida, mas precisa, sim, fazer algumas adaptações. A pessoa tende a se sentir perdida no começo mas, com o tempo, por assim dizer, ela vai ‘se acostumando’ com o diagnóstico e se adapta bem à nova situação. Cada pessoa tem um tipo de reação à soropositividade, mas algumas coisas precisam ser iguais para todo mundo. Por exemplo, quando o paciente for ao dentista, ele deve comunicar ao profissional que é soropositivo. Quando for se relacionar sexualmente, caso não se sinta à vontade para contar ao parceiro que é soropositivo, insista no uso do preservativo, para não contaminá-lo. Uma informação importante relacionado ao uso de preservativo é a de que a probabilidade de que uma mulher se contamine durante a relação sexual com um homem é muito maior do que a de um homem se contaminar ao fazer sexo com uma mulher. Assim, a responsabilidade da mulher exigir que o homem use o preservativo é igual à do homem ao assumir a posição irredutível de usá-lo. Mas muitas pessoas continuam não usando preservativos”. Quando iniciar o tratamento anti-retroviral “Por uma grande variedade de fatores, recomenda-se que o início do tratamento com drogas anti-retrovirais seja adiado o máximo possível. Há um valor de referência relativo ao nível de CD4 e de carga viral; só quando esse valor é atingido, ou seja, quando o nível de CD4 estiver muito baixo e a carga viral muito alta é que se recomenda o início do tratamento. Digamos que um paciente descobre hoje que é soropositivo, mas seu CD4 está em um nível não muito baixo e sua carga viral não está muito alta. O médico provavelmente não vai entrar logo com a medicação anti-retroviral porque, quanto mais cedo for iniciado o tratamento, mais rapidamente o vírus poderá desenvolver resistência à medicação, o que poderá limitar suas opções futuras de tratamento. Nesse aspecto, a desinformação assume um aspecto mais grave na disseminação da epidemia. Porque implantou-se a idéia de que a ‘AIDS não mata mais: se eu me contaminar, já existe remédio’. Sim, existe o remédio, a política de distribuição de medicamento para a AIDS no Brasil é excelente, mas a medicação ainda apresenta efeitos colaterais muito fortes. Ainda são freqüentes os casos de hepatite medicamentosa, isto é, uma hepatite provocada pelo próprio medicamento. Aí, a pessoa pode ter que ser hospitalizada e se ver forçada a trocar a medicação. A rotina de uma pessoa hospitalizada provoca várias alterações nas relações do trabalho, no relacionamento com marido, esposa, filhos… Veja, eu não estou dizendo que todas as medicações anti-retrovirais provocam efeitos tão dramáticos. Como salientei antes, algumas pessoas iniciam o tratamento e sentem apenas uma leve dor-de-cabeça durante algum tempo e, depois, não sentem mais nada. Mas a grande maioria dos pacientes sente pelo menos alguns efeitos colaterais bastante incômodos. Como para qualquer medicação, há um leque imenso de efeitos colaterais registrados e grandes variações de um indivíduo para outro. Como não é possível adivinhar se você vai ter ou não efeitos colaterais antes de começar o tratamento, continua valendo a política de que o melhor remédio é a prevenção “. Papel da psicoterapia na aderência ao tratamento anti-retroviral “Por tudo isso, eu ouço muitas queixas, não do HIV, mas dos efeitos da medicação. É quase um lugar-comum as pessoas dizerem que o ‘tratamento é pior do que a doença’. Eu tive um paciente, um rapaz muito jovem, que parou o tratamento porque não conseguiu suportar os efeitos colaterais e acabou morrendo. Uma outra paciente desenvolveu um quadro grave de depressão e está se tratando com antidepressivos, para suportar a avalanche de sensações e sentimentos que emergem quando se aproxima a hora de tomar a medicação. Ela toma uma dose de manhã e outra à tarde. Portanto, ela já acorda tensa, briga com todo mundo em casa, xinga as pessoas, tem crises de choro… E aí o marido dela a força a tomar o remédio. Doze horas depois, já no final da tarde, ela tem que tomar de novo. Ela me disse que o pôr-do-sol, para ela, se transformou em um pesadelo, porque o baixar do sol faz com que ela se lembre de que vai ter que tomar a medicação. Tenho outros pacientes que têm efeitos colaterais leves, como uma diarréia. Incomoda? Sim, incomoda, mas existe coisa muito pior do que isso. Resumindo, é uma bola-de-neve descendo morro abaixo: o stress pode desencadear doenças oportunistas que obrigam a pessoa a partir para o tratamento delas e/ou para o início do uso dos anti-retrovirais, que têm efeitos colaterais sobre o organismo e a psiquê. O papel do psicólogo, durante todo esse processo, é o de ajudar estas pessoas a encontrar alternativas para lidar com todas essas situações estressantes, auxiliar na adaptação do início do possível tratamento e também o de impedir que o paciente desista do tratamento, caso já tenha iniciado um. Porque, se o médico responsável chegou ao ponto de prescrever a medicação anti-retroviral, é porque essa pessoa está com a carga viral alta e o CD4 muito baixo (porta de entrada de doenças oportunistas). Nesse caso, se a pessoa não iniciar a medicação anti-retroviral ou descuidar-se do tratamento de alguma doença oportunista, dependendo da gravidade do conjunto de sintomas, a perspectiva é a de desenvolver sérios problemas de saúde, ter uma doença atrás da outra e chegar ao óbito”. (continua…)