Eu na platéia do meu primeiro crime homofóbico.













Aos meus sete anos vejo o primeiro homossexual ser espancado na minha frente e não sabia o porquê de tanta violência contra Marquinhos, aquele menino que servia as pessoas nos sortidos e sujos buracos da comunidade em que vivíamos.

Foi torturado por muitos, que em surdina o usava sexualmente também.

O pai, a mãe, vizinho e parente meus, meus próximos também o reduziram a zero.

Com a cabeça entre as mãos, defendia a o crânio e a face dos chutes, socos e tapas que levava e inutilmente pedia por ajuda.
Ninguém o socorreu ninguém lhe estendeu as mãos, ninguém teve compaixão daquele menino adolescente de 13 anos de idade, que nem sabia que o seu crime era gostar de rapazes, homens com H maiúsculos. Homens heteros flexíveis, que também gostavam de se deitar com outros homens nas moitas secretas da vila onde morávamos.

Impressionante que os mesmos que usavam Marquinhos, foram os que mais o açoitaram sem dó ou piedade naquele dia.

A lição que aprendi naquela tarde sombria é que eu não poderia ser igual ao Marquinho ou tudo aquilo que presencie passivo perante tanta violência me amendrotava, me apavorava poderia ocorrer comigo também.

Passei anos a fio encurralados nos meus desejos mais nobres e íntimos. O medo superou qualquer expressão de liberdade que pudesse vir a ter. Só em pensar eu acreditava que estaria me denunciando a comunidade que julgava em praça pública. Suava só de pensar. A testa minava de tanto pavor.

Na minha comunidade todos que transgrediram foram parar no tribunal popular. Um local marcado por cenas de violência, recreação e confraternização em épocas especiais na vida daquelas pessoas.

Várias pessoas ali tiveram suas vidas decepadas, aniquiladas, escurecidas, por não poderem ser oque eles queriam ser.

Mulheres casadas expulsas por fornicarem, homens que adulavam crianças, senhores velhos babões que se engraçavam com as filhas ou mulheres alheias. Um verdadeiro corredor polonês da moral e bons costumes.
Ninguém chorou inclusive eu.

Marquinhos aos 17 anos foi encontrado estrangulado por alguém que o usou sexualmente em meio a um matagal que brincávamos quando crianças e adolescentes.

Muitos de nós, incluído eu tivemos os nossos rituais de passagem para a fase do sexo, da perversão, da sacanagem, no mesmo local aonde foi encontrado o corpo de Marquinhos dias depois de ser assassinado por algum de nossos vizinhos ou por outro jovem homofóbico mais forte do que ele. Ninguém soube quem foi ou procuram saber. Remexer no caso era na época uma coisa sortida, suja, descenessária. Melhor esquecer-se do que mexer, descobrir quem pudesse ter sido tão vil com a vida de Marquinhos. Para muitos ele era um menino pervertido, um rebelde sem causa, uma mulherzinha, um afrescalhado. Um ser que necessitaria ser deletado mesmo e foi.

Marquinhos apanhou muito antes dessa tragédia assolar nossa comunidade. Apanhava de todos, pois muitos acreditavam que coças diárias poderiam desestimulá-lo da sem vergonhice que ele praticava.

Todos os meninos, crianças da comunidade eram proibidos de brincar com ele. Aproximar-se dele era uma coça na certa dada por nossos pais ou irmão mais velhos.

Ninguém viu, ouviu, ninguém notou que alguém o levou para o mato e lá o usou e depois o estrangulou.

No jornal da cidade, o único que existia e só saia aos domingos à tragédia continuou por semanas com as manchetes dizendo assim:

“Menor encontrado morto no matagal perto de sua casa”

“Estranho forasteiro suspeito de estrangular menino no mato”

Interessante que em nenhuma linha sequer das matérias sensacionalistas dominicais, poderia se ler uma única palavra sobre crime de ódio contra um jovem homossexual. Tudo censurando, cometido para não ferir os instintos mais sórdidos daquela comunidade, daquela cidade perdida no fim do mundo.

Por que Lágrimas Secas?

Ninguém chorou por Marquinhos! Sua mãe, seu pai, seus irmãos e irmãs pareciam que foram proibidos de expressar a dor através das lágrimas.

Muitos pêsames! Poucas rezas, pois até as rezadeiras do lugar resolveram fazer greve de reza no enterro de Marquinhos.

Quatro velas acesas sobre a mesa. O corpo de Marquinhos jazia solitário em uma sala de uma casa de cinco cômodos pequenos.

Da porta da sala, mas sem poder entrar para ver o meu amigo oculto sair de cena, podia ve-lo dentro do caixão vestindo uma camisa branca e uma calça preta. Seus pés foram vestidos com meias e sua mão descansava suave e descansada sobre o peito.

Minha mãe foi à única que depositou uma palma branca sobre seu corpo e fez pelo sinal da cruz. Rezou baixinho e saiu da sala me puxado bruscamente para irmos para casa.

Caminhamos em silêncio até o portão de casa e lá ouvi meu pai falar do fundo do quintal, se haviam muitas pessoas para ver aquele desavergonhado e concluiu que já havia ido tarde.

Senti naquele momento tanto ódio do meu pai, abaixei a cabeça e a noite com o rosto dentro do travesseiro chorei muito em silêncio.

Eu me lembro que tinha medo da morte, pois aprendemos no catecismo da igreja São Judas Tadeu, que só os maus iam para o inferno e o purgatório e os bons sentavam ao lado de Deus.

Eu não sabia se iria para o céu, pois tam,bém possuía os mesmos desejos do Marquinho pelos meus colegas, os quais possuíam desejos semelhantes por mim.

No escuro do meu quarto compartilhado com outros irmãos, via o rosto sereno de Marquinhos me acenando e sorrindo.

Era mito na comunidade que sonhar ou ver alguém rindo em seus sonhos era sinal de morte. Mas Marquinhos já havia morrido! Tinha sido assassinado. Interessante lembrar que na época não se pronunciava a palavra assassinato, mas sim morto.


A causa morte foi evitada até pelos policiais e o médico legista que estiveram no local. Mesmo sabendo que aquilo tinha sido um crime brutal, estupro seguido de estrangulamento, mesmo assim todos esses detalhes foram evitados, foram proibidos de serem mencionados na vila.

Sós os homens casados e viris foram permitidos de verem o corpo de Marquinhos no matagal com o calção de algodão marrom arriado e sua camisa transpassada pelo seu pescoço.

Nem Maria Moura, sua mãe e nem as suas irmãs lhes foram permitidas a ver o filho e irmão, que jazia sem vida no mesmo local aonde todos nós catávamos amoras, mexericas, limões galegos e bebíamos água da nascente que brotava de uma pedra, até então sagrada, mas que passaria a ser evitada para o resto da vida. Vida essa que menciono, pois anos mais tarde saímos daquela comunidade e fomos sobreviver em outra pior, aonde a intolerância, o racismo, o machismo, a violência doméstica alcançavam patamares larmantes.
Quem matou Marquinhos?

Todos os suspeitos eram homens casados, homens de bem, solteiros prestes a se casarem e constituírem famílias.

Ou como também havia a possibilidade de ser uma mulher que soube que Marquinho havia tido um relacionamento com o seu marido. Todos nós éramos suspeitos naquela comunidade. Todos sem exceção.

Por esse motivo do velório e o enterro de Marquinhos serem tão vazio, solitário, triste. Não havia lágrimas, compaixão de partes nenhuma.

Fui proibido de chorar por Marquinhos, pois ninguém chorava na comunidade e eu não podia chorar também. Pois naquele momento chorar a morte de meu amigo era confessar que eu, você seria como ele.

Marquinhos nunca soube que eu era amigo dele em silêncio. Eu o admirava, olhava com orgulho todo o corpo jovem dele, pois mesmo sendo escorraçado como foi e era pelos seus pais e conhecidos, mesmo assim eu o admirava pela coragem de ser o que ele queria ser.

Lembro-me que na saída do caixão dele da casa, carregado por quatros homens perversos da comunidade ouvi um dele mencionar para o filho menor de nove anos que seguia próximo a ele e o caixão.

“Viu o que acontece com pessoa igual a esse ai? – É morto para acabar com a sem-vergonhice. Homem tem que ser macho e não viado”

Para muitos a morte de Marquinhos foi mais que merecido, foi uma prova que não podíamos sair dos padrões de normalidades.

Lamentável a primeira morte de crime de ódio de menino homossexual que presenciei na minha vida.


VAGNER DE ALMEIDA