“Uma sopa de entulhos e contradições”















Em 1989, quando a primeira peça de teatro sobre HIV/AIDS intitulada “Adeus Irmão Durma Sossegado” escrita e dirigida por mim e produzida pela minha extinta companhia de teatro “Somos Dois Produções Artísticas” no Teatro de bolso de 70 lugares na Alliance Frances de Copacabana, no Rio de Janeiro, foi um BOOMMM de protestos dentro da classe teatral e artística.
Todos os argumentos foram levantados e um dos mais interessantes era que o título não era comercial. Mas com a supervisão geral do antropólogo Richard Parker, juntos conseguimos levar aos palcos a AIDS com temas totalmente brasileiros.
Era a AIDS dentro da casa de cada um de nós. A AIDS mãe, pai, filhos, solteiros e casados, homossexuais e heteros. Uma época em que ainda a população desconhecia alguém muito próximo infectado com o vírus. Isto incomodou muitas pessoas. A própria mídia na época coloca a AIDS completamente inserida na comunidade gay e diz que o assunto está saturado, como se a epidemia não houvesse já ultrapassado essas barreiras. Com esse espetáculo, a desconstrução estava ali no palco, na frente de todos. Sem a mídia o espetáculo doava suas apresentações gratuitamente para os grupos de apoio de AIDS como ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, ATOBÁ, que nos doavam preservativos e o Pela Vidda Rio de Janeiro, e outros grupos, que começavam a surgir. Tudo muito braçal e a epidemia já estava instalada na sociedade brasileira há mais de 10 anos oficialmente. Total negação tanto da população e da mídia. As piadas na época se multiplicavam e a moralidade se expandia sobre aqueles que eram descobertos soropositivos. Época muito difícil para todos e de grandes perdas.
O espetáculo foi registrado com uma câmera VHS da Sony, documento esse que será exibido em breve na mídia e no site www.vagner.de.almeida.com

Para a ironia do destino, nenhum canal de televisão quis dar uma nota se quer sobre o espetáculo. Algumas emissoras de TV que procurávamos ou nos telefonavam, diziam que o assunto era importante, relevante, mas o público não estava preparado para ouvir, falar sobre a Peste Gay no Brasil. – No mesmo período, centenas de amigos, conhecidos das classes artísticas já se encontravam infectados e alguns já haviam morrido ou se escondiam da mídia e faleciam no anonimato. Pouquíssimos foram descobertos pela mídia e tiveram ou tiveram a coragem de expor a sua soropositividade estapandas nas mídias nacionais. Adeus Irmão Durma Sossegado, seria a primeira peça original em português, pois outros textos apresentados no Brasil, nesta época, foram traduções de espetáculos que eram importados dos Estados Unidos. Como a “Mancha Roxa ’ e tantas outras.

Alguns jornais de massa, ou bem dizendo, algumas colunas de famosos como a coluna de Ibrahim Sued e o Caderno de Domingo Teatro do JB e Walter Rizzo do Jornal dos Esportes deram uma notinha de rodapé em suas colunas.
Jornais alternativos como Letras e Artes, Papo Teatral, Nós Por Exemplo, Boletim ABIA, Jornal de Hoje, Jornal do Teatro, Revista de Teatro da SBAT apareciam nas noites de espetáculo e me perguntavam o porquê de estar fazendo aquilo? Pois a epidemia então era uma coisa muito distante da sociedade brasileira. – Raras notas foram vinculadas nos grandes veículos de massa na época sobre Adeus Irmão Durma Sossegado,. Pelo contrário da ausência da mídia, muitas pessoas começavam a vasculhar esse universo, através da peça. Estudantes, futuros ativistas, mulheres de todas as classes sociais, gays, lésbicas, travestis eram o público de massa todas as noites.
Em 1990 insistindo com o tema, e lutando contra a maré logo em seguida surge o meu segundo espetáculo escrito e dirigido intitulado “Estou Vivo”, com o mesmo tema AIDS. Mas só que desta vez o que queríamos era falar sobre vida e conseguimos fazer uma trajetória muito mais positiva, pois a sociedade nos início dos anos 90 foi obrigada a engolir a AIDS crua pela garganta abaixo. Os casos se amontoavam tanto nos leitos hospitalares, e a mídia retomava o tema com a chegada do AZT publicamente.
Nesta época, mesmo com a mídia perversa bombardeando as manchetes com alarmismos, trouxe uma contribuição, muitas das vezes não muito positiva, para a sociedade e pessoas de peso tomaram a frente da campanha contra o HIV/AIDS. Personalidades dos meio artísticos começavam a se destacar como ativistas, colaboradores, infectados, mães, irmãos começaram a colocar a cara na frente das câmeras e as novas faces da epidemia como a do Betinho, Cazuza, Sandra Brea e tantos outros foram se organizando para uma luta que duros anos a fio, sem intervalo ou piedade.
Décadas necessitaram para que a mídia, mesmo que equivocada muitas das vezes, pudesse aderir ao movimento da luta contra AIDS. Muito necessitaram morrer, para que a sociedade acordasse e percebesse que negar seria uma tragédia mundial, como tem sido em tantos outros países do mundo.
Hoje parece que todos estão informados, sabem de tudo sobre a epidemia e irocamente os números continuam crescendo entre todas as classes sociais e gêneros dentro da população brasileira e tendo um dos melhores programas de AIDS do mundo.

VAGNER ALMEIDA